Fragmentos de memória

O cinema em Messejana

 

 

 

 

Nas quartas-feiras, no nosso cinema de Messejana eram sempre programados uns filmes de guerra, cowboy ou de aventura. Era dia de filme de boa bilheteria, daqueles que já vinha sendo anunciado há muito tempo, através dos trailers que acabavam assim: “Em Breve neste Cinema”, ou mais recentemente, na “Na próxima Quarta-Feira neste Cinema”, isso logo depois do jornal da UCB*, antes do início dos filmes.

 

Eu assistia praticamente a todos os filmes, os bons, os ruins, os liberados para a minha idade e os impróprios até 18 anos, de todos os gêneros, de violência, amor e sexo.  Mas mesmo estes impróprios não exibiam cenas de sexo explícito, na realidade apresentavam algumas cenas de nudez bem discretas, disfarçadas com cortinas ou vidro no banheiro. Com certeza eram bem mais inocentes que as cenas de amor das novelas das sete, da TV Globo da atualidade.  

 

Eu e meus amigos quando estávamos em férias, nossa ida ao cinema era quase uma obrigação, quase todos nós da turma entrávamos sem pagar. Apesar de o cinema pertencer ao grupo Severiano Ribeiro, o gerente e os porteiros eram todos moradores locais, conheciam a todos nós, estudantes “lisos”, moradores da vizinhança do cinema.    Bondosamente, liberavam o nosso acesso, por fora da borboleta, mesmo antes do início da projeção.

 

Eu tinha 15 anos, mas ainda me sentia um menino. Morava em uma casa que ficava literalmente em cima do cinema, ao lado da nossa sala ficava a cabine de projeção, de onde se ouvia o som dos projetores misturados ao som do filme que estava sendo projetado.  Se ficasse em casa ouviria o som do filme, mas não daria nem para imaginar as cenas, já que quase sempre era em língua estrangeira.  Isso me causava uma vontade louca de entrar no cinema, ver e ouvir o que estava na tela.  Era o que eu fazia nos seis dias da semana.  Na época, tinha um filme diferente para cada dia, exceção das segundas, quando não havia exibição, já que era destinado à folga semanal dos funcionários.

 

Não existia na época, opção de diversão mais atrativa que ir ao cinema. A TV Ceará já existia, mas a programação era muito primária, meio improvisada. Produzida aqui mesmo, com autores, artistas e apresentadores da terra. Não existia ainda o Videotape com programação do Sul, nem transmissão ao vivo via Embratel, transmissão de satélite também nem conhecíamos.   Tudo era uma cópia pobre do modelo de TV do sul, era tudo feito com dificuldades técnicas e muita criatividade cearense.

 

Aqui mesmo eram produzidas adaptações das melhores novelas do rádio, com os diálogos, figurinos, fundo musical e encenações teatrais, captadas em imagens com o uso do enquadramento nos planos de decoupagem do cinema; Close, Plongê, Médio e Travelling, cortados e transmitidas em mesa “Suíte” ao vivo e diretamente jogadas no ar.

 

Ambientadas em cenários de madeira compensada e pintadas em cinza, muito bem planejadas pelos cenógrafos, para permitir a ação do elenco e a perfeita movimentação de câmeras. Tudo era montado dentro do estúdio; as cenas de rua e praças eram todas artificiais e tomadas dentro do estúdio fechado, “indoor”, já que não havia câmeras com lentes para captação de iluminação solar, do tipo pancromáticas. Imagens rápidas com cenas de veículos ou animais, quando indispensáveis nos roteiros, só eram possíveis com as cenas filmadas em películas cinematográficas, de 16 mm, mudas com o som adicionados na hora de ir ao ar no estúdio, estas imagens eram captadas pelo Polion Lemos, ou ainda nos equipamentos de transmissões externas, (unidade de FM) equipados com câmeras dotadas de lentes, pré-adaptadas com grandes para-sóis, para a captação de imagens de luz natural e de longas distâncias, como acontecia nas transmissões do futebol no PV, sempre nas tardes de domingo. Ou nas avenidas, nas paradas de sete de Setembro e no corso de Rua do Carnaval.

 

Mesmo assim, a programação da TV ainda não era como hoje, muito cativante, embora já houvesse algumas filmes e séries em películas de 16 mm, para serem projetados em ilhas de telecines, nos estúdios do canal, (tipo Bell & Howell). Eram séries americanas produzidas e apresentadas semanalmente.

 

Isso já conseguia prender algumas pessoas no horários de fim de tarde, era o “Zorro” e “Capitão America”, já dublados no Brasil.   

 

O cinema permaneceu até quase o fim da década de 70, como favorito na diversão diária, da comunidade de Messejana. Todos os dias nós estávamos na plateia, até já havíamos nos apossado das cadeiras certas, sempre no mesmo lugar.  A gente até já sabia onde ficavam os habituais espectadores, os casais de namorados, sempre na última fila, onde ficavam mais invisíveis para beijos e outras carícias.  

 

Depois do filme, quando todos saíssem, era obrigatório ficar sentado lá fora na calçada, em conferência para comentar e discutir o filme e sobre os fatos focalizados no complemento que antecedia ao filme: do jornal da UCB, narrados por Luis Jatobá e Heron Domingues, ou do Canal 100, do Carlos Niemayer sobre os gols dos Campeonatos carioca ou paulista, filmados e veiculados já há quase um mês depois do jogo. Tinha como fundo musical o piano do Waldir Calmon, com a música “Que bonito é” do compositor, nosso conterrâneo nordestino, Luiz Bandeira, de Pernambuco.  Música posteriormente adotada pela Rede Globo nos gols da rodada, exibido no Fantástico.

 

Tinha ainda, que comentar e discutir o enredo do episódio da série que era sempre exibida antes do filme, com um final em suspense e a célebre legenda “Volta na Próxima Semana”. 

 

Mas o destaque importante mesmo, era comentar o filme principal. Discutir sobre quais cenas eram verdadeiras e as cenas mentirosas, as possíveis e as impossíveis.  Alguns diziam que aquilo do artista escapar das armadilhas miraculosas era mentira.  Na vida real aquilo era impossível de acontecer, outros afirmavam que tudo era possível, o artista era mesmo capaz de se sair das armadilhas dos bandidos, era uma discussão ferrenha.

 

Uma ideia que quase virou lenda!

 

Em uma dessas quartas-feiras, de julho de 1961. Lembro de um fato importante que marcou um pouco a nossa história. Nós havíamos assistido a um filme de guerra, onde o navio do artista estava prestes a explodir, o mar estava cheio de gasolina sobre as águas em fogo ardente. De repente o artista percebe que o navio vai explodir, então resolve pular sobre a água coberta de chamas! Ele mergulha direto na água e não se queima, pois ao ficar submerso ele vai para um clarão onde não havia fogo; lá ele escapa apoiado em um tambor flutuante. Isto foi muito discutido, pois alguns até não acreditavam que a água chegasse a ter fogo em sua superfície, pois diziam que a água apagaria o fogo, e que ao cair em cima, ficaria queimado e morreria. Os outros diziam que a água ficaria abaixo da gasolina, que era mais leve que a água. Que a gasolina em suspensão pega fogo normalmente, era a minha teoria e a do Moacyr Ellery, que estávamos absolutamente certo disto.

 

Para comprovar o nosso argumento resolvemos então levar gasolina até a Lagoa de Messejana, lá do Trampolim, que na época ainda existia, rebolaríamos (jogaríamos) tudo na lagoa e em seguida riscaríamos um fósforo.  Então ficaria comprovado que a gasolina sobre a água pega fogo. Mas como comprar gasolina se todo mundo estava liso?  De repente alguém lembrou que nas bombas de gasolina da calçada da padaria, do pai do Teté, seria possível aparar mais ou menos uns dois litros de gasolina, nas duas, pois elas a noite ficavam livres e sem cadeado, elas não funcionavam, pois a energia elétrica era desligada à noite.  Mas se alguém espremesse as mangueiras, era possível aparar gasolina. De repente apareceu alguém com uma vasilha e fomos em silêncio furtar a gasolina, (resto que ficava na mangueira), do português o Sr. Nogueira.  Ao afinal deu pra conseguir mais de dois litros.

 

Pois bem, eram quase 23 horas, pensávamos que poucas pessoas poderiam ver, todos já dormiam, saímos em grupo até o Trampolim, em poucos minutos teríamos a prova. Nesta época do ano ventava muito, qualquer coisa que se jogasse na água o vento levava logo para a parte mais distante da borda.

 

O local onde estávamos ficava bem perto do Balneário Clube de Messejana, onde estava havendo uma reunião da diretoria, onde também estava o meu pai e outros diretores.  Nós não havíamos lembrado esse pormenor. Também havia uma casa lá da esquina, que tinha os fundos para a lagoa, nela estava havendo uma seção de espiritismo, onde estavam alguma senhores bem acreditados e respeitáveis da comunidade.

 

Inocentemente damos início à experiência e prova: jogamos a gasolina sobre a água e em seguida foi riscado o fósforo.  A gasolina naquele tempo era mais grossa e tinha alguma viscosidade, o que unia muito as moléculas umas das outras e o fogo formou uma espécie de mancha única em chamas ardentes e demoradas, caminhando sobra as águas.  O vento foi levando aquele fogo flutuante para o centro da lagoa, formou um imenso clarão do nada.  Logo chamou a atenção dos que viram e não acreditavam naquele fenômeno.  Como a lagoa poderia pegar fogo naquela altura da noite? Lá no meio sem ninguém por perto?  Não sabiam que o fogo havia saído da borda, pois só chegaram a ver quando a mancha ardente já tinha atingido quase o meio, lá onde era muito fundo. 

 

Foi uma revolução na comunidade, no dia seguinte! Muitas versões sobre o fato se espalharam. Meu pai chegou em casa perplexo, disse que tinha visto pessoalmente o fenômeno, a água pegando fogo, “não era mentira ou boato”, ele viu e testemunhou pessoalmente, bem como os outros diretores. Nesta hora eu não tive a coragem de dizer que tinha participado daquilo, que o fogo era uma experiência comprobatória, sem outro propósito.

 

Foi uma receptividade tão marcante que fizemos uma convocação extraordinária do grupo para que todos nós ficássemos em segredo. Poderíamos sofrer alguma sanção mais séria, pois a coisa já tinha tomado outra dimensão.

 

Para dar uma dimensão ainda maior para o fato, por coincidência, soubemos que na seção do espiritismo estavam todos em oração, aguardando que certo espírito se manifestasse, que desse um sinal em forma de resposta, a algumas indagações que foram feitas. Quando de repente apareceu a lagoa pegando fogo!

 

Eles afirmaram que aquilo era uma resposta do outro mundo: todos haviam visto, aconteceu e não era boato. A celeuma cresceu; o Padre Pereira, vigário de Messejana naquela época, anunciou na missa que o Demônio havia se apossado da nossa comunidade e isso era um aviso aos pecadores. Já havia se comunicado com a arquidiocese para investigar o fenômeno.  O assunto tomou conta de todos.  O nosso silêncio perdurou por mais alguns dias.

 

Em outro dia resolvemos repetir a façanha! Agora com mais gasolina e em um horário mais cedo para que todos pudessem ver, fizemos uma cota e juntamos quase dez litros, fomos em silêncio até o Trampolim, jogamos a gasolina na água e riscamos o fósforo.  Corremos todos para o banheiro das mulheres e ficamos escondidos aguardando que o fogo chegasse até o meio para ser visto por todos. De repente começaram a chegar carros com pessoas para ver de perto o que era aquilo! O fogo ficou tão grande que passou a ser visto do outro lado da lagoa, onde havia alguns jornalistas do jornal “O Povo”.  Todo mundo viu o fogo, aquilo estava acontecendo de verdade. Porém o vento não ajudou muito e o deslocamento foi muito lento e o fogo durou muito pouco tempo, em relação ao primeiro dia.  Infelizmente cometemos um erro: uma das vasilhas com o cheiro da gasolina havia ficado na margem e no dia seguinte um jornalista investigativo a encontrou, cheirou e percebeu que aquilo havia sido usada para o tal fogo. Estava desvendado o “mistério”: o fogo era de gasolina e deveria ter sido feito por algum engraçadinho, disseram. Rapidamente a notícia se espalhou. O Jornal não falou nada não deu importância.  Ficamos todos com medo de assumir, pelo menos até que tudo fosse esquecido. Mas nem todos também acreditaram, neste desmentido. 

 

Pouco tempo depois resolvemos então contar aos nossos pais, explicando o que havia acontecido na primeira vez, o que nos tinha estimulado para repetir a proeza. Se não houvesse a segunda vez, talvez ainda hoje o fato fosse tido como verdadeiro e não seria esquecido tão facilmente. Mesmo depois que contamos tudo, muitos, ainda, não acreditaram em nosso desmentido. 

 

A Lagoa de Messejana era carregada e cheia de misticismo, diziam que ela gemia e logo depois suas águas atraiam alguém para o afogamento. Sempre que morria alguém afogado, diziam que ela havia gemido no dia anterior.   Diziam, também, que nela havia uma grande cobra preta que habitava no fundo.  Isto era só uma lenda, nunca ninguém viu nada disto, quando ela sangrava era uma grande comemoração.   

 

Que saudade, hoje a lagoa é um lago de estabilização sanitária. Recebe a água de esgoto das estações de tratamento dos condomínios de quase todos os apartamentos de Messejana. Muitas destas estações não processam corretamente a desinfecção sanitária especificadas nas licenças ambientais. Por razões econômicas não são adicionadas as quantidades certa de cloro, recomendada nos projetos aprovados. Como não existe fiscalização alguma, muitos condomínios jogam o seu esgoto “in natura”, sem qualquer tratamento.  Isto todo mundo sabe, o prefeito, os vereadores e as autoridades sanitárias, mas ninguém toma qualquer providência.

 

Recentemente um novo conjunto de condomínio, bem próximo da lagoa, que tem uma só estação de tratamento, para vários edifícios, estava fazendo o lançamento do efluente através de um canal a céu aberto. Tudo como estava projetado,  porém,  depois de tudo pronto perceberam que o custo da estação era muito cara, gastava muito cloro. Se o tratamento não fosse completo, haveria risco de exalar mau cheiro no canal a céu aberto, e todos perceberiam a deficiência do sistema. Então fizeram um novo trecho em tubulação fechada, subterrânea, indo até o encontro com outra rede antiga que vem do Pátio Messejana, também, já carregada de água servida semi - in natura, com as tampas bem lacradas para não soltar mau cheiro.

 

Os moradores estão pagando as prestações dos aptos e o custo mensal do condomínio, porém existe inadimplência significativa para as despesas. Nem todos os apartamentos estão ocupados, algumas pessoas não estão pagando nem as prestações do apartamento, imagine do condomínio. Como vão comprar cloro?  Então, como tudo fica as escondidas, por baixo do chão, o jeito é jogar a água servida na nossa Lagoa de Messejana. Isto é um crime contra a natureza. Mas quem vai evitar? Os políticos?  Que pena.

 

Messejana - Nome ou palavra que em Tupy Guarany significa “lagoa abandonada”.

Isto hoje é visível e comprovado.

 

 

 

Por Jamson Vasconcelos (Jamico)



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